Café com açúcar mascavo

domingo, setembro 22, 2013

Parece até brincadeira que tudo isso tem acontecido em tão pouco tempo. Eu passei a sexta-feira feliz, vi alguns amigos, caminhei, orei por mim, por meu avô. Minha mãe me disse que ele estava bem, e assim foi. Yupi.

Pode parecer prepotência ou mentira, mas acordei no sábado cansada de algo que eu não sabia o que, com o corpo doendo. Pensei que era por que tinha acordado cedo para ir pro treino de futebol do meu irmão, então tudo bem.

Parece que o mundo quando gosta de te castigar, ele faz de verdade. Ele não te cutuca um pouco, ele te espanca até ele dizer "Ok, essa pessoa já sofreu o suficiente". Não quero dizer que tudo o que orei na sexta-feira não valeu a pena, por que lembro-me de ter pedido "Senhor, seja feita a Sua vontade". E foi essa a Tua vontade.

Fui para a casa do meu avô pela tarde, para esperar o corpo ser liberado. Esperei até á meia noite, e apenas umas duas horas da manhã pudemos ir para o Memorial Parque Paulista. O mesmo local que minha avó foi enterrada há sete anos, mas parecia a mesma noite. Estava quente no começo, preferi ficar dando algumas voltas pelo estacionamento com minha prima, e lá pelas duas e meia da manhã o céu chorou.

"Você pode sofrer, mas não pode parar sua vida" minha mãe disse quando o carro funerário chegou por trás das salas de velório. Ela estava sendo forte, a minha mãe, eu não sei como ela não estava a beira de um ataque como eu.

Ele estava tão bonito, o meu avô. Sereno, um semblante de calma. "Parece até que ele só ta dormindo, Mandy" minha prima me disse. Parecia mesmo, se prestássemos a atenção, parecia que ele estava respirando. Mas mesmo sabendo que era o corpo dele ali, tinha muita coisa errada... Ele estava duro, frio e parecia até menor. Minha mãe disse que era impressão, e que ele estava duro no peito por causa da autopsia.

Lá pelas quatro da madrugada eu deitei no salão do aquário, onde meu tio estava deitado algumas horas antes. Eu não sabia onde ele estava agora. Talvez ele estivesse com a minha avó, talvez no carro. Dormi até as seis, me sentindo espancada. Empurrada pra baixo e pisoteada. Devo ter tomado mais café naquele período de tempo mais do que tomei o mês passado. Bendita máquina 24hs, faturou bem com minhas moedas.

Pode parecer egoísmo, mas fiquei com raiva quando deu umas dez horas da manhã, por que apenas eu e ás vezes minha prima, ficávamos com ele lá dentro. Ele estava sozinho, todos do lado de fora. Gente que nunca vi, alguns nem sabiam o nome dele. Eu queria gritar pra eles irem embora, mas não queria ser grossa nem fazer escândalo.

Eu fiquei o tempo todo do lado dele, eu queria poder fazer carinho no rosto, mãos, peito dele o dia todo.

Eles decidiram exumar o corpo da minha avó. Eu tinha que ver, mas não aguentei. O moço, o que faz esse serviço, ele não tinha carinho. Ele deveria estar acostumado, mas ele remoer a madeira apodrecida do caixão, recolhendo os ossos, separando o vestido branco, agora marrom, os sapatos pretos de laços... Com tanta frieza. Fui embora, fui ficar com meu avô de novo.

Me parte o coração lembrar da minha tia, que decidiu ir só pela manhã, debruçada sobre o corpo dele. "Cadê o bigode, Manda? Como deixaram tirar o bigode do meu pai?" pode parecer uma pergunta cômica, mas verdade. Umas das coisas que não pareciam com ele. Questionei minha mãe, por que tiraram a aliança dele, e não sabíamos onde estava. Queríamos colocar o relógio dele no pulso dele, a carteira de cigarros no bolso da camisa azul. Tinha muita coisa fora do lugar.

Minha tia me pediu perdão várias vezes, dizendo que a culpa não era dela. Mas eu não a culpava, ela havia o levado para o hospital com todas as melhores intenções do mundo, o Senhor sabe. Como alguém entra no hospital com uma dor na perna, e sai num carro funerário?

Meu avô foi enterrado junto com minha avó, e isso foi a unica coisa boa do dia. Sei que o espirito dele foi salvado pelo dela, minha avó sempre foi uma boa pessoa. E agora os corpos deles estão finalmente juntos de novo. Aquele caixão de madeira e metal dourado, aquele saco de exumação azul.

Eu queria vomitar, queria colocar tudo pra fora. Mas colocar o que? Café preto e açúcar mascavo? Eu sei que tenho que ser forte, mas dói. A promessa de que eu fiz de ir visita-lo no final de semana, nunca cumprida. O Bença, vô? nunca mais respondido.

Meu tio fumando quatro maços de cigarro em pouco mais de vinte e quatro horas, minha tia tendo um colapso, e um terço rezado. Eu não quero me lembrar dessas coisas, por isso tive que colocar tudo pra fora aqui. Eu preciso me lembrar do Dete, meu vô feliz, resmungão e que adorava chamar os netos Moço.

Não sei se alguém leu até aqui, mas eu precisava desabafar. E devo dizer, mesmo que seja algo fútil, e infantil, mas estou triste por ele nem ter me ligado pra saber se eu estava bem. Eu não vou correr atrás dele, não mais. Eu estive aqui o tempo todo, mas vou seguir minha vida.

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2 comentários

  1. Lindo texto, me emocionei!

    http://taisoliveirablog.blogspot.com.br/

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  2. A dor da perda é tão ruim. Algo inexplicável, doloroso, triste. Perdi duas tias do meu pai esse ano, dois meses de separação a cada morte. Uma delas eu via com mais frequência, a outra outra já via menos. A segunda entrou no hospital por causa de uma topada no dedo, e por causa desse dedo junto com o diabetes a levou. Não dá pra imaginar o quanto foi difícil para a minha vó uma senhora de quase oitenta anos ficar sem as irmãs... A dor de perder meu primo em um acidente de carro, dos meus dois tios que se suicidaram e entre outros conhecidos não foi fácil, e não deve ter sido fácil para as pessoas que os amavam mais do que eu. E não me imagino sem meus pais, meus avós, minhas irmãs. Como é triste esse adeus. Muita força, e que sua dor seja amenizada com o passar dos anos.

    estrellando.com

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